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13 setembro, 2010

Privatização de linhas da CP: um ponto de vista

Anunciada pela oposição de esquerda, mas nem confirmada nem desmentida pelo Governo, a privatização de uma parte importante da CP parece estar na ordem do dia. Nessa parte, estarão as linhas dos urbanos de Lisboa e Porto, os serviços Alfa e Inter-Cidades e a CP - Carga (que é já hoje uma empresa autónoma).

Verdades e mitos

A privatização terá como fundo o actual panorama de uma empresa com uma dívida fabulosa (3,8 mil milhões de Euros), e a imposição comunitária de abertura do sector à iniciativa privada. No entanto, é necessário atender ao facto de a esmagadora maioria do montante da dívida ascender a períodos anteriores a 2006, e resultar de dois factores convergentes: administrações nomeadas com base na fidelidade partidária e fortíssimo desinvestimento do Estado na ferrovia. Por outro lado, a imposição comunitária de abertura ao sector privado não pode, nem deve, ser confundida com privatização do sector público: ambos podem conviver a par, e desse confronto pode até nascer uma vantagem competitiva para os utilizadores dos respectivos serviços.

Contudo, fazer o que se fez com os urbanos da margem Sul[1], entregues exclusivamente à Fertagus, será repetir um erro clamoroso, com evidentes prejuízos para os passageiros. Só para se ter uma ideia, vejam os preços de duas assinaturas mensais para distâncias aproximadas (preços de Junho, distâncias estimadas):

Percursos Fertagus

Dist.

Preço

Lisboa (Entre-Campos)

Corroios

15

40,55

Lisboa (Entre-Campos)

Pinhal Novo

45

85,45

Percursos CP - Urbanos Porto

Dist.

Preço

Braga

Louro

22

29,9

Braga

Porto

58

51,5

Só desvantagens

A privatização das linhas tidas como “rentáveis” significará, por outro lado, deixar à CP exclusivamente as linhas de serviço social puro, ou seja, aquelas que por dever de solidariedade nacional têm que ser mantidas ao serviço de populações reduzidas; sem contar com as receitas das linhas entretanto privatizadas, a CP afundar-se-à numa nova montanha de dívidas, dando o pretexto necessário aos adeptos do asfalto para fecharem de vez centenas de quilómetros de ferrovia. Será não só um rude golpe social e ambiental, como também a machadada definitiva em qualquer esboço de contenção da desertificação do interior.

Há ainda que considerar o risco, sério, de se repetir entre nós o que aconteceu no Reino Unido: em quase 15 anos de serviço privado, não só não se concretizou a promessa de John Major de uma franca melhoria no serviço de passageiros, como este piorou acentuadamente sob todos os pontos de vista: regularidade, preço, conforto e segurança (com vários acidentes mortais a pontuarem a gestão privada).

Estamos, de resto, habituados em Portugal a parcerias público-privadas verdadeiramente ruinosas para o erário público: os privados adquirem todos os direitos, e lá conseguem incluir nos contratos cláusulas de salvaguarda que os resguardam de qualquer dissabor – se der lucro, ficam com ele, se der prejuízo o Estado compensa!

Finalmente, a privatização arrastará consigo acrescidas dificuldades para as organizações de utentes, como a nossa. É verdade que podemos, e devemos, continuar a pugnar pelos nossos interesses, mas teremos do outro lado um interlocutor impermeável às pressões que possamos exercer junto do poder político.

Seguir outra via

O caminho entre nós não se pode fazer olhando numa única direcção, a do lucro; o transporte ferroviário é, antes de mais, um serviço de relevância social elevada, e o menos poluente dos meios de transporte modernos – não pode, por isso, ser encarado como simples negócio.

França e Alemanha possuem várias companhias privadas a operarem na ferrovia – sobretudo no segmento do transporte de mercadorias – mas mantêm sólidas companhias estatais (SNCF e DB) a dominarem claramente o mercado. O mercado nacional não tem dimensão para que CP e privados possam competir, lado a lado, nas mesmas linhas (e nem sei se isso acontece em qualquer outro país); mas essa limitação não pode, em circunstância alguma, servir de pretexto para entregar a privados os serviços e linhas lucrativos, deixando morrer de lenta asfixia os restantes.

Estou na primeira linha dos que acham que o actual modelo de gestão da CP não serve. A companhia não pode continuar a acumular prejuízos, nem subsistir profundamente endividada; o momento não é o melhor para aliviar a pesada canga financeira, mas algo deve ser feito – desde logo para, limpando as finanças, reduzir drasticamente os custos, sobremaneira onerados com o serviço da dívida. Depois, há que encontrar o modelo que, aliando agilidade e responsabilidade, possa conferir às unidades de negócio autonomia suficiente, num quadro em que a participação de representantes dos passageiros, por um lado, e a excreção dos boys que a empresa vem acumulando nas últimas décadas, por outro, sejam referências incontornáveis.


[1] Excepto a linha do Barreiro.