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07 abril, 2013

"Logicamente, regressemos ao passado"

"Em resposta ao desafio do Rui Tavares, escrevi um mini-ensaio-relâmpago sobre um dos muitos males que se abateram sobre o país. Como já é costume, o meu texto não foi escolhido, mas vocês podem ler. Alimento para o cérebro.
O carro é uma invenção recente. As experiências decisivas datam do final do século dezanove, e a sua difusão generalizada aconteceu nas décadas seguintes. A bicicleta, se bem que um pouco mais antiga, teve um percurso inicial paralelo ao do automóvel. O comboio começou a transportar passageiros em 1830. No entanto, o meio de deslocação mais vulgar do mundo começou muito antes, há centenas de milhares de anos. Esse meio é a deslocação a pé.

Com o crescente predomínio mundial do automóvel, a tendência das sociedades modernas para andar cada vez menos a pé parece um retrocesso civilizacional. Aparentemente, quanto mais evoluímos, mais regredimos nas nossas deslocações.

A gestão urbana moderna costuma hierarquizar os modos de deslocação da seguinte maneira (do mais importante ao menos): pedonal; bicicleta (e mota) e transportes públicos; carro. Isto vale, por exemplo, em termos ecológicos: um peão não polui; as bicicletas poluem apenas no processo de fabrico; o carro e o transporte público poluem na sua produção e ao se moverem. No entanto, é sempre preferível um autocarro meio cheio do que um carro meio vazio. Em termos sociais a hierarquização é igual: se a pé nos mantemos em contacto uns com os outros, de carro fugimos da realidade. Em termos de espaço, igual: um carro estacionado ocupa o espaço deixado livre pelo peão. Igual é a análise em termos de saúde pública. E por aí fora.

No mundo moderno o carro é rei. Se existem países europeus em que as políticas públicas têm debelado esse predomínio, nos países em vias de desenvolvimento a tendência é a do crescimento do uso do carro, e do consequente abandono dos modos tradicionais de deslocação. E o transporte público, que necessita de investimento para prosperar, não resiste ao lóbi automóvel

Em Portugal o modo pedonal continua relevante nas deslocações de muita gente, mesmo comparando com a situação europeia, mas a deslocação em bicicleta (outrora forte em várias zonas do país) e em transporte público (em 20 anos perdemos 40% dos passageiros de comboios) têm dado lugar ao automóvel. Se a perda de passageiros no transporte público se deve ao fecho de linhas ferroviárias e ao desinvestimento crónico, a residualidade do uso diário da bicicleta deve-se ao não-investimento infraestrutural, mas sobretudo à depreciação social desse meio de transporte. E tudo isto é causado pelo predomínio do automóvel.

A título de exemplo refiro o Porto (e arredores). A sua rede de elétricos (o Porto teve a primeira linha da Península) atingiu 150 quilómetros de extensão; os tróleis vieram desocupar os elétricos, e por sua vez os autocarros; o metro veio colmatar um vazio existente, custando, no entanto, mais de mil milhões de euros a instalar. Outro exemplo: entre o Porto e Vila do Conde existia uma ciclovia com mais de 25 km, paralela à EN13, desmantelada para aumentar o espaço para os carros. Por toda a área metropolitana gastam-se milhões para construir ciclovias, quando as infraestruturas existentes foram abandonadas. No extremo oposto, a rede de autoestradas foi crescendo ao ponto de sermos o país europeu com mais quilómetros per capita. É este o uso racional dos dinheiros públicos?"