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21 abril, 2016

Desculpe, mas o seu telemóvel está a estragar a minha viagem


O comboio é um excelente meio de transporte para trabalhar, mas viajar dentro de um escritório não agrada a toda a gente.


Marta apanhou cedo o Alfa de Lisboa para o Porto e preparava-se para dormitar durante a viagem. Mas, ao seu lado, um jovem quadro com o computador aberto e o telemóvel ao ouvido dava recados para a equipa com quem ia reunir-se. À frente, um homem de meia-idade, com um grande relatório lido e sublinhado, levantava dúvidas: “Quando dizes aqui tal e tal… não era melhor escrever tal e tal…?” Um terceiro indivíduo repetia que se tinha esquecido de desmarcar a reunião e transmitia pedidos e instruções várias para a empresa.

Metade do comboio vai “a despacho” num frenesim onde pontuam as conversas, mais ou menos altas, por telemóvel. Homens de negócios, empresários ou funcionários aproveitam o tempo para trabalhar sobre carris.

Mas o tempo pode ser aproveitado para outras coisas que não ouvir os problemas dos outros passageiros. A Marta apetecia uma viagem relaxada. Queria ter lido um romance e até trabalhar um pouco, sim, responder a e-mails, enviar recados por SMS. Mas, sobretudo, gostava de ter descansado, o que não conseguiu. Por isso, reclamou.

São muito poucos os passageiros que se queixam deste problema. Fonte oficial da CP diz que, em 2015, a empresa só recebeu cinco reclamações relacionadas com o ruído proveniente de conversas ao telemóvel — três de viagens no Alfa Pendular e duas nos Intercidades. Por isso, a transportadora não prevê criar zonas para clientes que não utilizem o aparelho, como já acontece noutros países.

Zonas de silêncio
A França foi dos primeiros a introduzir as voiture silence no TGV. O conceito evoluiu para os Espace Calme, existentes apenas na 1.ª classe e nas quais vigoram regras muitos específicas: “Discussões em voz baixa, uso de auscultadores, aparelhos electrónicos em modo silêncio”, informa a operadora ferroviária SNCF.

Na mesma página da Internet onde anuncia que procedeu à instalação nos comboios de novas e mais potentes antenas de recepção do sinal de telemóvel, a sua equivalente alemã, a Deutsche Bahn, informa os passageiros de que aumentou o número de “zonas silenciosas” destinadas “aos passageiros que desejam viajar mais calmamente”. Trata-se de carruagens com compartimentos “onde toda a actividade que provoque ruído (telefone e equipamentos de música, mesmo com auscultadores) será considerada indesejável”.

Nos caminhos-de-ferro ingleses os comboios têm várias carruagens onde só se pode conversar em tom de voz baixo e é proibido falar ao telemóvel. O mesmo acontece na Holanda nos comboios Intercidades. E mesmo na vizinha Espanha, onde falar alto faz parte da cultura, a Renfe introduziu no ano passado um bilhete denominado “coche silencioso” que permite viajar em alta velocidade em carruagens com uma iluminação menos intensa e nas quais não é permitido conversar ao telemóvel. O objectivo, anunciou o presidente da empresa, Júlio Gomez-Pomar, foi responder “a uma procura crescente de passageiros que viajam de manhã cedo, ou que pretendem aproveitar o tempo de viagem a descansar ou a trabalhar”.

Mas é precisamente esse o problema. Trabalhar implica — também — falar ao telemóvel. A CP diz que “o facto de ser possível utilizar comunicações móveis, de voz e dados, a par do espaço para trabalhar que existe nos comboios de longo curso, constitui uma diferenciação positiva importante” deste meio de transporte quando comparado com os seus concorrentes — “como o automóvel, o autocarro ou o avião”. A empresa não quer matar a galinha dos ovos de ouro porque sabe que muitos clientes da 1.ª classe preferem o comboio por esse motivo. E, para promover as viagens por motivos profissionais, até tem um lema: “Conforto para trabalhar. Comodidade para descontrair.”


Fonte oficial da empresa diz que “falar ao telemóvel pode ser quase idêntico a conversar com outro passageiro. O modo como é feito, o tom de voz e o cuidado em não incomodar outras pessoas é efectivamente uma questão de educação e civismo”. Por isso, os revisores têm instruções para intervir “nos casos em que o incumprimento pelos passageiros dos deveres que lhes incumbem perturbe os outros, cause danos ou interfira com a boa ordem do serviço de transporte”. Mas criar espaços reservados nos comboios para quem só prefere descansar está fora dos planos da empresa.